Política
06 Setembro de 2024 | 13h01

Sarita de Almeida: “Ajudei na formação e capacitação da Polícia do Sudão do Sul”

A superintendente Sarita Tomás de Almeida representou, pela primeira vez na História de Angola, a Polícia Nacional numa Missão de Paz das Nações Unidas, juntamente com o superintendente-chefe José Valente Pimpão. Ambos trabalharam no Sudão do Sul, durante dois anos. O Jornal de Angola publica hoje a entrevista da superintendente Sarita Tomás de Almeida, que aponta como nota de destaque o desejo de ajudar um país irmão a consolidar a paz.

Como começou o processo que a levou a integrar o contingente de Paz das Nações Unidas no Sudão do Sul?

Houve a indicação de sete oficiais da Polícia Nacional para participarem num teste de pré-desdobramento, promovido pela Divisão de Polícia do Departamento de Operações de Paz da ONU, de 14 a 25 de Fevereiro de 2022, na Academia de Polícia de Ankara (Turquia). Fomos submetidos a testes de avaliação de condução, tiro ao alvo, inglês falado e escrito, onde foram apurados apenas dois oficiais, entre os quais eu. Fui apurada e senti-me feliz e orgulhosa de saber que seria a primeira mulher Polícia de Angola a participar, pela primeira vez na História da Angola independente, numa Missão de Apoio à Paz.

O que isso representou na sua vida pessoal e profissional?

Representar Angola além-fronteiras é uma grande responsabilidade, pois os nossos actos se reflectem no país. Portanto, o sentimento foi de alegria, orgulho, gratidão, medo e de dever cumprido.

Para além disso, o que me motivou a fazer parte desta grande organização internacional foi o facto de poder contribuir para a construção da paz, divulgação de doutrinas operacionais da UNPOL (Polícia das Nações Unidas) em âmbito internacional, sedimentando nas forças policiais locais a necessidade de se desenvolver uma Polícia legítima, com base no respeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos.

Até que ponto a Rede de Mulher Polícia de Angola colaborou para integrar a missão? 

A Rede de Mulher Polícia de Angola (REMPA) teve uma colaboração especial neste processo, porque a solicitação para a participação de dois efectivos da PN veio de Nova Iorque, sendo Angola membro da Associação Internacional de Mulheres Polícias e, nesta qualidade, tem participado nas Operações de Patrulhamento Conjunto na região. Outrossim, está alinhado com a Resolução 1.325 do Conselho de Segurança da ONU sobre Mulher, Paz e Segurança, que prevê o aumento da participação das mulheres e integração da dimensão da igualdade de género em todas as fases dos processos de construção da paz, incluindo em todos os níveis de decisão. Nesta conformidade, a Missão Permanente de Angola junto das Nações Unidas, em Nova Iorque, por intermédio do Adido de Polícia, superintendente chefe Martins Manuel Diogo Soares, contactou a então comissária-chefe Elizabeth Rank Frank (Betty), na altura presidente da Rede de Mulher Polícia de Angola, que indicou o meu nome, por ter domínio da língua inglesa e por ser trabalhadora abnegada e comprometida.

Quando é que partiu para a missão?

Eu, Sarita Domingos Tomás de Almeida, e José Valente Pimpão viajamos para Juba, para o cumprimento da Missão de Paz das Nações Unidas na República do Sudão do Sul, no dia 29 de Junho de 2022, depois de termos sido submetidos e aprovados na formação e avaliação realizada na Turquia, em Fevereiro de 2022. Esta é uma das exigências do Departamento de Apoio à Paz das Nações Unidas para o Desdobramento de um Oficial de Polícia Individual (IPO’s) numa Missão.

Como foi a interacção com as comunidades no Sudão do Sul?

A interacção foi boa, porque transmiti confiança, segurança e troca de experiências. Sensibilizamos pessoas, com base no plano de trabalho, sobre fenómenos como fuga à paternidade, gravidez na adolescência, violência sexual e baseada no género, violência doméstica, casamento forçado, uso de drogas e álcool, saúde reprodutiva. A aceitação por parte da população foi positiva. Foi um aprendizado e, por vezes, ficava emocionada pelos relatos da população que vivia em situação difícil de pós-conflito.

Sentiu algum carinho ou desconforto por parte dos sul-sudaneses em relação ao trabalho das Nações Unidas?

O povo sudanês, especialmente os da cidade de Juba, é um povo traumatizado, por isso muitos não eram acolhedores, especialmente porque não falávamos a língua local. Por vezes, eles diziam que nós, das Nações Unidas, fomos roubar o dinheiro deles. Mas havia, também, pessoas simpáticas. As pessoas das províncias eram mais simpáticas e acolhedoras do que as da cidade capital.

Teve alguma dificuldade em relação à comida?

A gastronomia africana acaba por ser a mesma. Apenas varia na forma de confecção. Havia muito peixe proveniente do rio Nilo e tínhamos fuba de bombó, milho branco e amarelo, batata doce, ginguba, kizaca, feijão, peixe seco, carne de vaca e de cabrito, jimboa, quiabo e beringela. Por isso, cada um confeccionava a sua própria refeição, dependendo dos gostos. Eu cheguei ao ponto de pisar kizaca que comprei no mercado, porque na base não havia como proceder.

Até que ponto missões do género contribuem para a elevação do nome de Angola, em especial da Polícia Nacional?

A participação de Angola nas missões de apoio à paz sob a égide das Nações Unidas foi especial, uma vez que permitiu ajudar um país irmão em conflito interno, e coloca Angola na lista dos países contribuintes em missões do género. Por exemplo, até antes da nossa ida, muitas pessoas de outras nações sabiam pouco ou quase nada sobre o nosso país. Por isso, só temos a ganhar. A bandeira de Angola foi hasteada no meio de outras nações, sendo, por isso, um orgulho.

Quais foram as bases que sustentavam o vosso mandato?

O mandato esteve sustentado em quatro pilares fundamentais que são:  Protecção de civis em situação vulnerável; Criação de condições favoráveis para a entrega de ajuda humanitária; Assistência, monitoramento, investigação e elaboração de relatórios relacionados com abusos e violações dos direitos humanos nas várias vertentes; e Apoio à implementação do Acordo de Paz Revitalizado em 2018.

Como era a relação com os demais colegas?

A relação com os colegas de trabalho era boa, nota 1000. O angolano é um povo alegre, simpático e consegue entrosar-se e ser notável com muita facilidade. Os meus colegas chamavam-me de Sarita Baby, eles diziam que sou muito carismática e conselheira.

Teve alguma dificuldade de comunicação?

A língua inglesa foi a de trabalho na missão.  Eu falo e escrevo em Inglês sem dificuldades, isso facilitou o meu trabalho. O que ocorreu são apenas sotaques diferentes, mas depois de algum tempo de convivência, tornou -se fácil. Para além do Inglês, o povo sudanês fala Árabe. A população ficou feliz quando nos comunicávamos na língua local, neste caso Árabe, que aprendi também um pouco, mas confesso que não foi nada fácil.

Em que área desenvolveu o seu trabalho?

Trabalhei em várias áreas, como no Departamento de Capacitação (Capacity Building) na secção de Protecção de Género, Crianças e Pessoas Vulneráveis (GCVPP). O nosso trabalho era abordar tópicos como compreensão da integração na perspectiva de género, crianças em conflito, violência sexual e de género e pessoas deslocadas. Transmiti sentimentos de confiança e segurança às vítimas. Também sensibilizámos a população para quebrar o silêncio e denunciar os casos de violência sexual baseada no género. Sensibilizamos no sentido de apoiar e proteger as vítimas destes crimes e o trabalho era feito nos mercados, escolas, com taxistas de moto e carro, com camionistas, polícias, militares e a população em geral.

Sendo mulher Polícia, como é que a família reagiu quando foi seleccionada para esta missão?

Pelo facto de ser mulher, esposa e mãe, para mim é um orgulho e desafio, visto que a mulher sempre foi tida como sexo frágil, incapaz de realizar determinadas tarefas em relação ao homem. Para o cumprimento deste grande desafio, tive o apoio da minha família e, em especial, do esposo (José de Almeida) e filhos, pois foi a primeira vez que me ausentei por um período tão longo. O esposo sabia que seria uma forma de progressão profissional. A mulher tem mais sensibilidade no tratamento de determinados assuntos e, em termos de missão de paz, a mulher consegue obter resultados positivos com facilidade, pois transmite segurança, confiança e superação.

Qual é o sentimento depois de cumprir esta missão?

Sinto-me honrada, abençoada e realizada profissionalmente. Todo o efectivo das Forças de Defesa e Segurança almeja participar um dia numa missão das Nações Unidas. Ser "capacete azul”, como via apenas nos filmes, é uma honra, bênção e privilégio. Maior orgulho ainda em ser a primeira mulher na História de Angola. Por isso, dou glória a Deus por tamanha graça. E também agradeço ao Governo de Angola por ter aprovado a Lei 15/21, de 10 de Junho, que aprova o envio de contingentes militares e para-militares para o cumprimento de missões de paz.

A preparação combativa nesta missão obedeceu a algum critério em especial?

A preparação combativa das Forças obedeceu a um calendário específico, com dois tipos de Polícias: A que cumpriu missão, como foi o meu caso, onde trabalhei como conselheira de Polícia, e a Força Unida da Polícia, equivalente à PIR em Angola. Estes tiveram preparação especializada para enfrentamento. No princípio e fim de cada mês, havia treinamentos conjuntos de simulações de conflitos, para aferir o grau de prontidão das forças. A interacção com os chefes foi positiva, com a troca de experiências.

Houve alguma experiência negativa que gostaria de frisar que ocorreu durante a missão?

Experiências negativas tive poucas. Dizer apenas que, pelo facto de sermos somente dois angolanos na missão, por vezes, as pessoas preferem dividir o quarto com alguém da mesma nacionalidade, em função de alguns hábitos culturais. É o caso das mulheres egípcias e muçulmanas, que só aceitam ficar no mesmo quarto com alguém da mesma nacionalidade ou religião.

Recebeu alguma distinção durante a sua missão?

Fui agraciada com uma medalha e um certificado ainda na Missão de Paz, quando completei seis meses. Após o cumprimento da Missão de Paz, fui distinguida com um certificado de melhor polícia do mês de Abril de 2023, certificado de apreciação e agradecimento pelo cumprimento com êxito e representação condigna de Angola e Carta de Recomendação da Missão para as autoridades angolanas, no sentido da valorização do quadro e habilitação para o cumprimento de qualquer missão das Nações Unidas. 

O que representaram para si essas distinções?

Representam ser campeã na política externa do país. Do meu ponto de vista, é o mesmo que alguém que participou numa competição desportiva e conseguiu trazer a medalha de ouro para o país. Desta vez, foi uma medalha política e a primeira desde que Angola se tornou independente, representando, por isso, um orgulho nacional pelo reconhecimento internacional. Para muitos, pode parecer pouco, mas é o reconhecimento da presença do país. Gostaria muito que os angolanos percebessem bem a importância deste acto.

De que forma é que contribuiu para a reestruturação da Polícia local, já que trabalhou como conselheira de Polícia?

Enfrentei desafios ligados à integridade, diversidade económica, cultural e religiosa. Vivenciei situações de riscos e conflitos armados, o que me tornou capaz de superar percalços e contribuir para a reestruturação da Polícia local, com a difusão de conhecimentos na área policial, contribuindo para a aproximação da população com a Polícia.

Teve algum receio em relação à sua segurança?

O que acontece é que, no terreno, o Acordo de Paz no Sudão do Sul era volátil, porque algumas pessoas morreram e o Governo fez tudo para contrapor a situação político-militar, o que implicou que o pessoal da Missão das Nações Unidas de Apoio à Paz estivesse sujeito à vulnerabilidade de toda ordem no que diz respeito à segurança. Houve alertas constantes através dos meios disponibilizados pela Missão, com o recolher obrigatório a partir das 19 horas para todas as componentes da Missão (Militar, Polícia e Civis).

Teve alguma dificuldade de adaptação?

Honestamente falando, não tive dificuldades de enquadramento, porque o trabalho de Polícia obedece a um padrão internacional e é feito em equipa, fica mais fácil. Como vivi no Zimbabwe, a partir de lá ganhei experiência de conviver com pessoas de várias nacionalidades de países africanos, americanos, europeus e asiáticos. Mas a minha ida para esta missão teve a contribuição da Rede da Mulher Polícia, na pessoa da ex-comandante Bety, a quem agradeço e cujos ensinamentos procuro seguir.

Porque a ex-comandante Bety?

A ex-comandante Bety tem garbosidade, espírito de liderança, profissionalismo, humildade e amor ao próximo. Soube conduzir com afinco e profissionalismo os destinos da Rede Mulher Polícia de Angola na Região da SADC, tendo como objectivo ver mais mulheres em cargos de destaque, mais mulheres independentes, mais mulheres envolvidas em empreendedorismo e independência financeira para poderem sustentar a família e, consequentemente, contribuir no desenvolvimento da sociedade. A comandante Bety é um exemplo de mulher Polícia para a velha e nova geração.

A mulher pode atingir qualquer patamar dentro da corporação?

Sim, a mulher pode atingir qualquer patamar, se tiver vontade, experiência e oportunidade de mostrar aquilo que sabe e vale. Por exemplo, a chefe da Missão no Sudão do Sul é uma mulher, competente, profissional, humilde e trabalhadora por excelência. Desde que haja oportunidades, a mulher tem grande potencial para ocupar cargos de destaque, pois a mulher faz tudo com amor.

Qual é a palavra que quer deixar para as demais mulheres polícias?

A palavra de encorajamento é a seguinte: Na vida tereis aflições mas tende bom ânimo. Nada vem do nada, a caminhada é dura e espinhosa, mas o futuro é risonho e promissor. Que tenham paciência, força, profissionalismo, integridade e amor ao trabalho. Porque muitas mulheres gostam de aproveitar-se do facto de serem mulheres e mães para se furtarem das suas responsabilidades e, com isso, acabam por ser ultrapassadas, perdem oportunidades de trabalho. Por isso, apelo a todas que sejam firmes e profissionais.

Que avaliação faz do trabalho da Rede Mulher Polícia de Angola na Região da SADC?

A Rede da Mulher Polícia de Angola a nível da SADC tem feito um trabalho extraordinário. Sendo Angola membro da Associação Internacional de Mulheres Polícias, nesta qualidade tem participado nas Operações de Patrulhamento conjunto na região. Este feito ímpar na História de Angola está alinhado aos objectivos estratégicos da Resolução 1325, que prevê o aumento da participação das mulheres e integrar a dimensão da igualdade de género em todos as fases dos processos de construção, incluindo em todos os níveis de decisão.

O que representa a comandante Bety para si, tendo em conta a experiência de trabalho na Polícia Nacional?

Representa uma mãe que transmitiu experiência e vivência profissional, tendo em conta a carreira invejável que teve com mérito, devido aos sacrifícios e barreiras que enfrentou ao longo desses anos, por ser mulher. Ela é o modelo para todas nós, particularmente para mim.

Além da comandante Bety, tem uma outra figura a quem gostaria de publicamente reconhecer pelo papel que teve na sua carreira?

O comissário Manuel Chima, comandante da Polícia Fiscal e Aduaneira, é um pilar na minha carreira policial. Apostou em mim desde 2010 e, até hoje, estamos juntos. Começámos na ex-DNIC (Direcção Nacional de Investigação Criminal). Foi ele quem me enquadrou na Polícia Nacional e, logo a seguir, na INTERPOL, depois, no Secretariado na Polícia Fiscal e Aduaneira. Posteriormente, disse-me que tinha que ganhar asas e voar, apostando em mim com algumas funções, desde chefe de Posto a comandante de Esquadra Fiscal. Quero igualmente destacar Sua Excelência o ministro do Interior, general Eugénio Laborinho,  Sua Excelência comandante-geral da PNA, comissário-geral Arnaldo Carlos, Sua Excelência Director de Intercâmbio da PNA,  comissário Destino Pedro, Sua Excelência comissária Engrácia Costa (mãe), directora de Comunicação Institucional da PNA e Sua Excelência subcomissária Lisbela Carla,  presidente da REMPA, Sua Excelência subcomissária Anisabel, Subcomissário Amável, superintendente chefe Martins Soares e, com muito amor, carinho  e gratidão, a minha querida irmã e mãe Dra. Joana Tomás, pelo apoio incondicional em todos os níveis e fases da minha vida.

Qual é o seu sonho?

O meu sonho e maior desejo é ser recebida em audiência por Sua Excelência o Presidente da República, João Lourenço, no sentido de apresentar a Medalha de Paz e a Carta de Recomendação alcançada pela primeira mulher polícia a participar numa Missão de Apoio à Paz na História de Angola, acabar de escrever o meu livro e construir um Lar de Acolhimento para vítimas e sobreviventes da violência baseada no género.


Fonte: JA