Economia
13 Abril de 2021 | 09h32

Tunda dos Gambos enfrenta grave crise alimentar

Solução passa pela construção de barragens, represas, canais de água e outras infra-estruturas de irrigação, bem como transvases de rios mais caudalosos, para garantir melhor atendimento à região Sul de Angola

No Ngandji, uma aldeia que fica cerca de 100 quilómetros no interior do município dos Gambos, província da Huíla, centenas de pessoas sobrevivem de folhas, frutos silvestres e tubérculos, cujos nomes elas mesmas desconhecem.

É o drama da fome, que aperta por essas paragens, devido à prolongada estiagem, numa região tradicionalmente de poucas precipitacões, a provocar o deslocamento de populações inteiras para outras zonas, à procura de água e melhores pastos para os animais. Em alguns casos, são famílias inteiras a deixarem os seus kimbos, à procura de sobrevivência noutras regiões limítrofes. A transumância, hoje, deixou de ser exclusiva para os homens, passando a engajar todos os membros da família, para tentar salvar os poucos animais que sobreviveram à seca.

A situação é tão desesperante que, na Tunda dos Gambos, um boi de médio porte  já está a ser vendido a pouco menos de 50 mil kwanzas, quando noutros mercados, como o de Luanda, ultrapassa os 500 mil. Quem conseguir vender na Chibia, um município mais a Norte dos Gambos, regressa com cerca de 150 mil kwanzas, mas um quilo de fuba de milho custa 1.500 kwanzas. No Ngandji, as famílias estão desesperadas para vender, pelo menos, uma galinha, mas não há compradores.

Impotentes, vímos gente de aspecto esquelético, uns mal conseguiam pôr-se de pé, crianças   "grávidas de fome”. Um homem de meia idade acabou por cair, enquanto era abordado pelos jornalistas. Já levava alguns dias sem levar nada à boca. Estava com fome. Bem por perto, outras pessoas gemiam de fome, olhos fundos, pele rugosa, magras o quanto basta, era o quadro revelador de uma miséria extrema que nos foi mostrada em directo.

As pessoas consomem água turva de poços lamacentos. Nalguns casos, dividem-na com o gado. Criou-se um quadro capaz de trazer muitas doenças. Para quê escamoteá-lo?  Gerou-se um  ambiente de grande comoção entre a caravana de jornalistas, sobretudo os mais sensíveis.

Imagens particularmente chocantes.Houve mesmo quem, como o Nelson Pedro, da RNA, não conseguiu conter as lágrimas. O feijão dado à caravana por Gil Chindai, um  promissor jovem agricultor do Cunje, próximo do Cuito, Bié, acabaria por ser doado a alguns aldeões da Tunda dos Gambos, a começar pelo  Ngandji.


Gado perde valor

Considerada a principal reserva de alimentos para o gado e a prática da agricultura de sobrevivência, devido à fertilidade dos solos do Vale Tchimbolelo, a Tunda dos Gambos foi  invadida por milhares de cabeças de gado bovino e mesmo caprino provenientes dos municípios do Virei, Camucuio e outras povoações das províncias do Namibe e Huíla, num cenário com potencial para gerar conflitos pela disputa de espaços pastoris.
O seculo  de Ndandji,  Tyndulo Kamutuepatyi, descreveu ao Jornal de Angola a gravidade da situação por que passam as comunidades, referindo que a seca severa, desta vez, atingiu seriamente tudo e todos. "Este ano não choveu, aqui há fome de verdade, tanto as pessoas como os animais ninguém escapou,  já não  há comida para ninguém”, diz, lacrimejando. Acrescenta que "há pessoas que dormem com fome dias seguidos, faltam furos de água para o gado, os pastos ficam  distantes e muitos animais morrem durante a transumância”.

É, pois, de fome que se fala aqui na região dos Gambos. Enquanto mostra aos repórteres uns tubérculos, denominados "mandjombele”, uma espécie de batata doce, mandioca ou coisa que se pareça, com que as pessoas vão mitigando a fome por esses dias, Tyndulo Kamutuepatyi, 73 anos, adianta que na sua aldeia o consumo de raízes e folhas, que até aqui não faziam parte dos hábitos alimentares das comunidades dos Gambos, poderá, no futuro, trazer graves consequências para a saúde das pessoas.

"Muitos vão às matas cavar essas coisas que nunca comemos, não sabem que isso poderá trazer mais tarde doenças, que podem provocar rapidamente a morte”, lamenta o seculo, que não confirma, para já, mortes directamente ligadas à fome nos Gambos.

Tyndulo Kamutuepatyi diz, contudo, que em situação  de desespero, as pessoas estão a vender quase todo o seu gado no mercado da Chibia, um dos mais importantes da Huíla, a preços muito baixos, porque, acrescenta, muitos aproveitam o sofrimento das pessoas para se enriquecerem. "Compram bem barato e vão fazer muito dinheiro noutras províncias”, sublinha. Mas é o preço da sobrevivência. Adianta que os compradores chegam a impôr os preços, ao que numa situação de desespero, como a que se vive hoje na Tunda dos Gambos, pouca gente resiste.

No seu caso particular, vendeu quase todos os animais, para  "aguentar” a sua família e as comunidades ao redor da aldeia de Ngandji.  "Vendi  quase todos os meus bois.Estão a acabar, não tenho mais como fazer, para sustentar as pessoas”, sublinha Tyndulo Kamutuapatyi, visivelmente triste e apontando para as poucas  quatro dezenas de animais que lhe restam num curral adjacente ao seu vasto kimbo, que acolheu os jornalistas que durante cerca de um mês participaram do projecto "Andar o país, pelos caminhos da agricultura”, organizado pela estação de rádio Luanda Antena Comercial, LAC.

Ele referiu que, por conta da fome, pelo menos quarenta dos seus animais já sucumbiram, algo que se repete com muitos outros criadores, cri-ando uma situação de grande instabilidade emocional nas famílias, pelo statu que representa o gado.

"A pessoa vende um boi, depois outro e mais outro, compra fuba de milho para a  famíllia e o bocado que resta divide com os filhos, sobrinhos e netos, que vivem comigo aqui no kimbo. Não há lucro nenhum, o importante é salvar as pessoas da fome”, assume o ancião. Ainda assim, a Tyndulo Kamutuapatyi resta o orgulho de algum gado de raça, como fez questão de sublinhar ao Jornal de Angola, quando perguntado sobre a capacidade de resiliência, ante um quadro que tem tudo para tornar mais pobres as comunidades da região da Tunda dos Gambos.

Ele lamentou a falta de apoio em áreas como Educação e Saúde. "Aqui não há escolas para as crianças, nem postos de saúde e se alguém fica gravemente doente, até chegarmos ao asfalto, para apanhar o carro até à Chibia ou Chiange, pode acabar por morrer no caminho”, palavras do seculo do Ngandji.

O ancião apresentou, depois, as suas três esposas, a mãe e 16 filhos, com quem vive no sobado. As primeiras conservam ainda algum vigor e esperam voltar à lavra tão logo caia chuva, para cuidar da família, numa região onde a mulher tem um papel central na produção de alimentos. Boa parte dos filhos já constituíram família, mas ainda dependem do pai para sobreviver. Já a mãe, de 108 anos, não se levanta do chão, de tão debilitada pela fome.

À  já vasta família, Tyndulo Kamutuapatyi junta os  "ovatekuluas”, pessoas que, não sendo da linhagem, acabam por serem criadas no Kimbo, o que diz bem das suas responsabilidades sociais, para alimentar toda uma comunidade muito próxima de centena e meia. O que se relata aqui é a fome na Tunda dos Gambos nos seus aspectos mais dramáticos. Até os cães tornaram-se mais mansos. Estão, também, com fome e perderam a pujança canina. Pelo menos não vímos nenhum a ladrar durante a nossa esta-dia de mais de duas horas na aldeia do Ngandji e noutras por onde passámos.

Tyndulo Kamutuapatyi, uma das mais respeitadas autoridades tradicionais na região da Tunda dos Gambos, zona de grande concentração de fazendas agropecuárias da Huíla, pede a estes últimos mais apoio para as comunidades, sobretudo no domínio do abastecimento de água, apartir dos seus vários furos.

 Aqui, a Fazenda Tchimbolelo deve ser destacada pela sua perfeita integração  junto das comunidades, a quem, além de empregos e outros apoios, garante o abastecimento de água em quantidades que permitem mitigar a seca prolongada, como pudemos constatar apartir de depoimentos de populares, ainda na área do Dongue, no desvio para a Tunda dos Gambos.
Em tempos de carência, como a que se vive nos Gambos, a partir de três pontos da fazenda são fornecidos, em média, entre três e quatro mil litros de água, em bidãos de até vinte litros, num contributo muito valorizado pela população, que vive nos arredores e que vê no jovem fazendeiro um verdadeiro salvador.

Aliás, Fernando Borges, o mais conhecido fazendeiro de Angola, falecido em 2008, aos 81 anos e criador da Fazenda Tchimbolelo, sempre viveu entre aquelas comunidades. Um dos filhos, Celson Borges, seguiu-lhe os passos e o espírito solidário. São raras as vezes que sai do Tchimbolelo. Vive, por assim dizer, entre o gado. Aos jornalistas, mostrou um projecto pensado para diminuir a importação de carne. Gado de alta selecção, criado com elevados padrões de qualidade e que representa a principal marca desta fazenda.


Números da seca
O depoimento de Tyndulo Kamutuapatyi pode ser a fotografia possível de uma  realidade que afecta toda a região dos Gambos, numa altura em que as autoridades falam em 41.608 como o registo de pessoas em estado de extrema vulnerabilidade devido à fome tremenda. Quase metade da população total - 92.464- deste município, que fica cerca de cento e cinquenta quilómetros a Sul da cidade do Lubango. As zonas mais críticas ficam na Calela, Taka, Tuiku, Tytonotongo, Tyipeio, Luvota, Paquelo, Okanga, Tapu e Pocolo, todas mais a Sul dos Gambos.

O administrador municipal, Elias Sova, falou, sem avançar cifras, da assistência às famílias com bens alimentares e reconheceu, no entanto, "não ser, esta, a solução para contrapor ao fenómeno seca”. Ao Jornal de Angola explicou que existe "uma discussão” sobre a viabilidade da construção de uma barragem sobre o rio Caculuvar e a represa Tuatua, criação de "corredores verdes”,  para mitigar a situação da seca e abrir caminhos para o fomento da prática da agricultura de regadio no seio das  famílias.

Sobre a situação de emergência, Elias Sova referiu ser importante a implementação de um sistema de informação e alerta rápido, com dados que permitam o aconselhamento das comunidades para se prevenirem de situações de estiagem com consequências para a produção alimentar.

Zona de forte influência do deserto do Kalahary, desde Novembro do ano passado que não chovia nos Gambos, retornando na segunda quizena de Março, com as sementeiras da primeira e segunda épocas já comprometidas. Mas como não há bela sem senão, as poucas quedas pluviométricas permitiram, pelo menos, a recuperação dos pastos, para alívio dos criadores tradicionais de gado.
Na vila  da Cacula, a vice-governadora da Huíla falou-nos da  estratégia para lidar com as alterações climáticas. Maria João Tchipalavela referiu-se, em concreto, a um fenómeno que "não é novo” na região, recordando a seca das décadas de cinquenta e oitenta, com as consequências de que se tem conhecimento.

Sem avançar números, ela insistiu numa aposta  séria em culturas mais resistentes à seca, como o massango, batata doce, mandioca, abóbora e outras, em paralelo com a abertura de furos de água, construção de barragens e represas. De férias na Humpata, o conhecido engenheiro agrónomo Isaac dos  Anjos acabaria por corroborar desta opinião, avançando, entretanto, com mais detalhes, sobre a estratégia a seguir.

"Estamos, agora, no final de Março, temos apenas mais um mês de chuvas e depois vem o Cacimbo, que são mais quatro meses. Logo, temos que ver as coisas  não na dimensão do hoje, porque já não  vamos a tempo”, referiu,   defendendo a  mobilização de mais recursos para as infra-estruturas de irrigação, de atendimento de água,  para que haja menos desperdício deste recurso natural, que vai todo para o mar.
Isaac dos Anjos defendeu mais investimentos  para um melhor aproveitamento do caudal dos rios. "Não fazemos os investimentos necessários, porque leva tempo e isso tem consequências”, reconheceu.

Ele deixou a receita: "Tem que se fazer mais infra-estruturas de irrigação, barragens, condutas de água, transvases, enfim, obras que podem durar dez ou 15 anos, mas que têm que ser feitas”.
O também antigo ministro da Agricultura defendeu a construção das barragens de Njam-ba Yamina, Njamba Yoma, Baynes e o transvase da água do rio Cubango para o Cunene, evitanto a sua perda para o delta do Okavango.

Fonte: JA