Política
04 Abril de 2021 | 10h59

Celebrar a Paz com os olhos secos

Uma frase que ouvimos amiúde é que só quem viveu a guerra pode dar valor à Paz. O mais certo é que ninguém devia precisar de conhecer a primeira para estimar a segunda.

Ouvir ou ler discussões acerca das armas e do seu poder destrutivo causa-nos repulsa, na medida em que alguns continuam a fazer apologia aos duelos, quando se deviam preocupar em cimentar os ténues laços de irmandade que possuem com os seus hipotéticos rivais, para todos juntos construírem no país e no Mundo inteiro um melhor lugar para se viver.

Os angolanos podem considerar-se privilegiados por poderem celebrar duas datas comemorativas a respeito: o 21 de Setembro, Dia Mundial da Paz, instituído pelas Nações Unidas, em Assembleia Geral, em 1981, e o 4 de Abril, Dia da Paz e Reconciliação Nacional, estabelecido em 2002.  A ONU considera a Paz uma realidade quotidiana, em que as crianças podem ir à escola e os adultos trabalhar sem temer pela própria vida e dos seus. O ideal seria que os preciosos dons da Paz passassem despercebidos, sem alusões ao tempo em que o tecido social era pisado pelos horrores da guerra.

Ter vivido a guerra devia apenas servir de experiência para destruir os muros que separam os homens e os enviam para os campos de morte, como simples carne para canhão. Alguns dirão que tudo isso é utopia, até porque há quem tenha medo de palhaços, mas justificar todos os medos pela coulrofobia é um diapasão que dispensámos para afinar o nosso piano para tocar a nova harmonia, que pretendemos duradoura.

O número de pessoas afectadas pela guerra em Angola, tanto na luta pela Independência, quanto nas agressões externas e no conflito interno, ainda está longe de ser determinado.  A principal tendência nessas estatísticas é referir os mortos e feridos, muitas vezes sem olhar para a guerra como um todo desastroso. O facto de o 4 de Abril ser o Dia da Paz e Reconciliação Nacional remete-nos para a necessidade de reflectir de forma profunda sobre a nossa realidade, seja do ponto de vista económico, seja no aspecto social. As diferenças entre os angolanos são bem conhecidas e sempre referidas quando sobre a mesa está o que distingue cada um de nós.

O passado colonial e a forma como se formou a Angola actual continuam a ser evocados por quem ainda vê as diferenças como sinónimo de desagregação no sentido dessa ser um factor incontornável no tocante à geração de conflitos. Ver o país como um mosaico e assumi-lo como tal é um passo importante no sentido da reconciliação nacional. De pouco importa se esse será o primeiro ou apenas mais um, porque todas as caminhadas levam o seu tempo e requerem suor. Às questões de cariz étnico, somam-se às de ordem religiosa. Chefes e correntes ditas de fé aproveitam-se da situação em que se vive e de problemas decorrentes da guerra, como a pobreza e o subdesenvolvimento,  para se afirmar entre nós.

Importantes figuras, entre as quais líderes religiosos, questionam-se se "poderá existir Paz verdadeira, enquanto houver homens, mulheres e crianças que não podem viver a sua dignidade humana”. Mais se interrogam, se essa situação poderá ser "duradoura num mundo onde predominam relações - sociais, económicas e políticas - que favorecem um grupo ou uma nação à custa de outros”. Por ter sido tão longa e devido à sua intensidade e à presença de várias forças no terreno, a guerra em Angola causou problemas sociais e familiares com sequelas difíceis de ultrapassar. Esse facto talvez explique a tendência de alguns em insistirem em recordar esse passado triste da nossa história.

Momentos e grupos com tudo para serem lembrados como grandes exemplos de altruísmo e de camaradagem acabam ofuscados por referências ao poderio bélico dos beligerantes. Publicar nas redes sociais imagens de máquinas e armamento utilizados durante o conflito serve apenas para alimentar o ego e a vaidade de quem o faz. Dezanove anos após o calar das armas, muitas foram as mudanças registadas no país, em particular, numa tomada de consciência de práticas e comportamentos lesivos ao erário, mas é facto que muito ainda tem de ser feito, tanto no campo económico, a começar pela criação de empregos dignos, como no social - na Educação, na Saúde, na Cultura...

O momento é de se avaliarem as políticas de exploração dos recursos naturais e o investimento dos capitais daí obtidos. Uma distribuição mais equitativa da riqueza da terra é o caminho a seguir pelas autoridades, no sentido de se colmatarem as discrepâncias que ainda se verificam entre as diferentes regiões, com reflexos negativos sobre as populações aí residentes, sob pena de se criarem novos focos de descontentamento, portas abertas para as tensões sociais e novos conflitos.
Também é tempo de limpar os olhos e celebrar. Comemorar a Paz com os olhos secos.

Fonte: JA