Uma frase que ouvimos amiúde é que só quem viveu a guerra pode dar valor à Paz. O mais certo é que ninguém devia precisar de conhecer a primeira para estimar a segunda.
Ouvir ou ler discussões acerca das armas e do seu poder destrutivo
causa-nos repulsa, na medida em que alguns continuam a fazer apologia
aos duelos, quando se deviam preocupar em cimentar os ténues laços de
irmandade que possuem com os seus hipotéticos rivais, para todos juntos
construírem no país e no Mundo inteiro um melhor lugar para se viver.
Os
angolanos podem considerar-se privilegiados por poderem celebrar duas
datas comemorativas a respeito: o 21 de Setembro, Dia Mundial da Paz,
instituído pelas Nações Unidas, em Assembleia Geral, em 1981, e o 4 de
Abril, Dia da Paz e Reconciliação Nacional, estabelecido em 2002. A ONU
considera a Paz uma realidade quotidiana, em que as crianças podem ir à
escola e os adultos trabalhar sem temer pela própria vida e dos seus. O
ideal seria que os preciosos dons da Paz passassem despercebidos, sem
alusões ao tempo em que o tecido social era pisado pelos horrores da
guerra.
Ter vivido a guerra devia apenas servir de experiência
para destruir os muros que separam os homens e os enviam para os campos
de morte, como simples carne para canhão. Alguns dirão que tudo isso é
utopia, até porque há quem tenha medo de palhaços, mas justificar todos
os medos pela coulrofobia é um diapasão que dispensámos para afinar o
nosso piano para tocar a nova harmonia, que pretendemos duradoura.
O
número de pessoas afectadas pela guerra em Angola, tanto na luta pela
Independência, quanto nas agressões externas e no conflito interno,
ainda está longe de ser determinado. A principal tendência nessas
estatísticas é referir os mortos e feridos, muitas vezes sem olhar para a
guerra como um todo desastroso. O facto de o 4 de Abril ser o Dia da
Paz e Reconciliação Nacional remete-nos para a necessidade de reflectir
de forma profunda sobre a nossa realidade, seja do ponto de vista
económico, seja no aspecto social. As diferenças entre os angolanos são
bem conhecidas e sempre referidas quando sobre a mesa está o que
distingue cada um de nós.
O passado colonial e a forma como se
formou a Angola actual continuam a ser evocados por quem ainda vê as
diferenças como sinónimo de desagregação no sentido dessa ser um factor
incontornável no tocante à geração de conflitos. Ver o país como um
mosaico e assumi-lo como tal é um passo importante no sentido da
reconciliação nacional. De pouco importa se esse será o primeiro ou
apenas mais um, porque todas as caminhadas levam o seu tempo e requerem
suor. Às questões de cariz étnico, somam-se às de ordem religiosa.
Chefes e correntes ditas de fé aproveitam-se da situação em que se vive e
de problemas decorrentes da guerra, como a pobreza e o
subdesenvolvimento, para se afirmar entre nós.
Importantes
figuras, entre as quais líderes religiosos, questionam-se se "poderá
existir Paz verdadeira, enquanto houver homens, mulheres e crianças que
não podem viver a sua dignidade humana”. Mais se interrogam, se essa
situação poderá ser "duradoura num mundo onde predominam relações -
sociais, económicas e políticas - que favorecem um grupo ou uma nação à
custa de outros”. Por ter sido tão longa e devido à sua intensidade e à
presença de várias forças no terreno, a guerra em Angola causou
problemas sociais e familiares com sequelas difíceis de ultrapassar.
Esse facto talvez explique a tendência de alguns em insistirem em
recordar esse passado triste da nossa história.
Momentos e grupos
com tudo para serem lembrados como grandes exemplos de altruísmo e de
camaradagem acabam ofuscados por referências ao poderio bélico dos
beligerantes. Publicar nas redes sociais imagens de máquinas e armamento
utilizados durante o conflito serve apenas para alimentar o ego e a
vaidade de quem o faz. Dezanove anos após o calar das armas, muitas
foram as mudanças registadas no país, em particular, numa tomada de
consciência de práticas e comportamentos lesivos ao erário, mas é facto
que muito ainda tem de ser feito, tanto no campo económico, a começar
pela criação de empregos dignos, como no social - na Educação, na Saúde,
na Cultura...
O momento é de se avaliarem as políticas de
exploração dos recursos naturais e o investimento dos capitais daí
obtidos. Uma distribuição mais equitativa da riqueza da terra é o
caminho a seguir pelas autoridades, no sentido de se colmatarem as
discrepâncias que ainda se verificam entre as diferentes regiões, com
reflexos negativos sobre as populações aí residentes, sob pena de se
criarem novos focos de descontentamento, portas abertas para as tensões
sociais e novos conflitos.
Também é tempo de limpar os olhos e celebrar. Comemorar a Paz com os olhos secos.
Fonte: JA